Certa manhã, Gregor Samsa acordou transformado em uma criatura monstruosa para mudar a literatura como a conhecíamos. Escrita por Franz Kafka em 1912, quando tinha 29 anos, A Metamorfose é uma obra singular. Começando a história pelo clímax, a novela busca dar conta das consequências desse acontecimento grotesco, que provoca sentimentos conflitantes nos pais e na irmã. Gregor, que até esse dia trabalhava para sustentar a família, passa a depender deles para sobreviver. À medida que se dão conta de que sua condição é irreversível, a família começa a encará-lo como um estorvo, e o caixeiro-viajante vai enfrentar angústias existenciais e rejeição familiar.
A transformação de um homem em animal não representava algo novo na literatura quando Kafka a publicou, em 1915. Afinal de contas, desde a Odisseia, de Homero, e As Metamorfoses, de Ovídio, passando pelas fábulas de Esopo e La Fontaine, até as histórias da Disney, nos acostumamos a ver pessoas metamorfosearem-se em animais. No entanto, em geral, elas alcançavam a redenção. Na peculiar fábula de Gregor Samsa, porém, a história é diferente, proporcionando múltiplas interpretações, que passam pelo absurdo existencial, a alienação, traços de uma possível depressão, além de uma família disfuncional. A saúde mental do personagem nos guia por recantos sombrios, evocando temas atuais como ansiedade, depressão e suicídio implícito. Dores eternas da alma que ecoam em cada fresta dessa obra-prima.
Escrita no início do século XX, essa novela é uma das primeiras a tratar da modernidade não como tema, mas como elemento estruturante da narrativa. O personagem principal dessa história não é um herói romântico, capaz de, com a força de sua vontade, subjugar a vida e moldá-la aos seus próprios desígnios. O que Kafka nos mostra é que uma estrutura gigante, anônima, impessoal e invisível conduz a vida de seus anti-heróis.
Para dar conta dessas inovações literárias, o autor, nascido em Praga, criou um narrador que não se caracteriza pela onisciência, como ocorria na literatura até então. O narrador de A Metamorfose não tem acesso aos pensamentos mais profundos de Gregor Samsa. A história é contada como se estivéssemos confinados no quarto junto com o personagem, e vamos tomando conhecimento da sua subjetividade à medida que o protagonista vivencia todas as fases dessa experiência: a transformação, a adaptação e a rejeição.
A Metamorfose transcende seu tempo. A edição especial que a
DarkSide® Books apresenta aos leitores, dentro da marca Medo Clássico, é ricamente ilustrada e conta com paratextos especiais sobre a criação, a criatura e sua relevância. O cineasta David Cronenberg, de
A Mosca (1986), evoca na Introdução a clássica abertura da novela para refletir: “Sou um inseto que sonhou que era um humano e adorou isso. Mas agora o sonho acabou, e o inseto acordou”. Além dele, temos uma apresentação do tradutor, Ramon Mapa, que comenta as inovações introduzidas pela novela, que alcançam o cinema, antecipando o body horror, e iria influenciar os filmes de horror décadas depois. Walter Benjamin comenta o papel fundamental de Max Brod para a sobrevivência da obra deste que é considerado um dos mais importantes autores do século XX. Além disso, uma história editorial, possíveis leituras do clássico e uma cronologia sobre o autor complementam a edição, em que Kafka explora o absurdo da condição humana. E questiona o que resta de nós quando o mundo nos condena como monstros.